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Minotauro ft. Hodari

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02

Uma textura arranhada de sintetizador enche a sala, vinda de um Prophet 6, um teclado analógico tributo ao clássico Prophet 5 de 1978. Um sintetizador arpejado movimenta-se por baixo. Os dois fazem um diálogo bonito, o último pulsando por baixo do sintetizador principal como orgãos moles dentro uma estrutura dura de ferro. O produtor equaliza um pouco para dar espaço para o baixo que se seguirá.

Porque é que fazemos aquilo que fazemos? Porque é que passo dez horas num estúdio fechado à procura de uma textura nova, de uma forma diferente de descrever o mundo, de uma sonoridade que eu não consiga nomear, até já não me restar energia nem para brincar com a minha filha? Porque é que um telefonema de trabalho interrompe tudo - jantares, brincadeiras, descanso - como se fosse um pacto que, se eu quebrar, me vai tirar tudo aquilo que eu já ganhei? Porque é que não consigo parar de apontar ideias no telemóvel, mesmo quando alguém me está a olhar nos olhos? Porque é que decidi descansar o dia todo, depois de me descobrirem um quisto no intestino, mas estou na cama a escrever este texto?

 

O que eu faço, apesar de não ser um emprego de horário fixo, é a minha forma de estar no mundo — ajuda-me a percebê-lo, dá-lhe significado, beleza e ao mesmo tempo sustento. Não é bem trabalho. Não é bem prazer. É um pouco dos dois. Se tivesse um patrão, penso às vezes, tudo seria mais fácil de justificar. Seria um dever e não um prazer, e o sacrifício é nobre e o prazer carrega culpa.

- Consegues fazer os acordes mais cheios e emocionais? Um pouco mais épicos mas com beleza…okay, isso!

Na minha cabeça imagino os arranha-céus da Avenida Paulista a passar lentamente pelo vidro escuro do uber que apanhei ontem para o hotel, a pele quente da minha testa a tocar no vidro frio. Está tudo a soar hiper moderno mas com grão e textura, o que eu gosto.

Hoje em dia vivo diariamente com a frase “se tudo isto vai desaparecer, como aproveito o meu tempo de forma intensa?”

 

Como posso viver 48 horas num dia de 24?

 

Quando estou a caminho de alguma coisa, sinto-me vivo. A chegar à Sony em Madrid para me apresentar como artista. Em Argel, com os meus parceiros a tentar mostrar ao mundo algo que me apaixona, enquanto somos vigiados por polícias à paisana. A filmar um videoclipe em que a actriz principal emociona toda a sala com a sua performance. A caminho de São Paulo para uma semana de residência com artistas e produtores que admiro.

 

No meu estúdio às 2 da manhã,

 

  Sou um cientista louco num laboratório com a cara iluminada de azul, que sai para fumar à janela a olhar para a Lua, saboreando o que acabou de inventar.

 

          Sou um filósofo em 1660 a reinterpretar o mundo à luz das velas, sem saber se alguém um dia me vai perceber.

 

                Sou o Fernando Pessoa na Baixa-Chiado a viver dentro de palavras em páginas infinitas, absinto ao lado, enquanto o mundo lá fora seguia a sua rotina sem saber que nunca mais iria ser o mesmo.

 

                       Sou um relato de futebol permanente, sempre a chegar perto do golo.

 

                              Sou uma página da Wikipédia que vai contando com um tom factual cada capítulo da minha vida.


                                      Sou uma personagem da Disney a largar o seu local de origem para perseguir o seu sonho, os violinos a tocar enquanto avanço.


                                              Sou o mito do sonho, do trabalho, do legado, da imortalidade, da transcendência. Sou uma imagem épica que me foi passada — e que tento reproduzir a todos os momentos da minha vida, dando todos os segundos a um ideal capitalista, como grãos de um deserto que vão caindo para dentro de um buraco invisível pouco a pouco.

- Como podemos tornar este synth mais francês?

- Como assim, mais francês?

- Com uma textura mais Air, mais Daft Punk, e uma melodia emocional e sweet mas dark.

- Assim?

- Demasiado feliz. Tem de estar algures entre o triste e o alegre, sombrio mas com beleza…

- Vê lá assim.

- Okay, está a ir lá…

Apanho o voo da noite para São Paulo com estúdio marcado de manhã. No aeroporto já estou a gravar vozes, enquanto uma criança brinca com os pais ao lado. Vi a pequena cabeça da minha filha a tentar espreitar pela janela do carro para me dizer adeus, a chamar “papá!” enquanto o carro se ia embora, a desaparecer entre turistas recém-chegados, famílias que se despediam, alguns toxicodependentes a deambular, polícias a manter o trânsito a rodar, e a minha mão direita com um cigarro a limpar as lágrimas da cara, que escorriam enquanto o meu músculo do queixo se contorcia para cima e para baixo, descontroladamente.

 

Sei racionalmente que nem todo o sacrifício é recompensado. Nem todo o esforço vale a pena. Se fosse, os meus melhores amigos de liceu não viveriam em casas mínimas sem janelas, a mãe do André não teria trabalhado até ter um AVC, o Gama não teria de dormir com os vidros partidos no inverno, o Sandro seria jogador de futebol, o Necas não estaria preso por homicídio, a Natália não teria morrido aos 16 anos, o Wilson não teria sido encontrado no Tejo depois de uma semana em decomposição na água turva.

 

Peço à hospedeira um copo de água. Escolho o arroz com frango, os tortellinis vêm sempre cozidos demais. O sonho de levar a minha música até ao Brasil ferve-me a cabeça e não me deixa dormir, assim como o assento pequeno e o braço teimoso do senhor ao meu lado. Um dia vou viajar em primeira classe, penso. É um sonho específico e concreto o suficiente por agora, para o qual neste preciso momento faz todo o sentido trabalhar.

- Liga o microfone, quero experimentar uma melodia. (Num momento inicial procuro melodias fortes e ritmos inesperados, que tenham algo de familiar para mim e ao mesmo tempo novo. Solto uma espécie de grito de aviso, a cantar sobre as sirenes que se ouvem pela cidade, “até que um dia, quiçá, nos venham buscar”.)
- Gosto disso, responde o produtor.

- Eu também, mas ainda pode ficar melhor. Estou à procura da letra certa. Isto faz sentido em português do Brasil?

(Dentro desta letra apocalíptica tenho de pôr algo de verdadeiramente belo, senão isto vai parecer um daqueles filmes independentes do norte da Europa em que tudo é feio e escuro. Tem de ser poético, belo, forte e duro, mas sobretudo belo, penso para mim.)

- Deixa-me repetir este verso, vou cantar de novo.

Ao meu lado no avião, um irmão e uma irmã vêem um filme de acção com as cabeças encostadas uma à outra. Uma mãe tenta acalmar o filho irrequieto. Uma senhora mais velha passa por cima do meu ombro em direcção à casa de banho, os óculos a reflectir as luzes ténues do corredor. As estrelas brilham na janela do avião à minha direita, a lua em quarto crescente a iluminar um campo de nuvens brancas azuladas em baixo.

O artista com quem estou a trabalhar completa a letra e surpreende-me verdadeiramente. Acrescentou drama e trouxe referências bem metidas das quais não me tinha lembrado. A música está dura mas bonita. Faz-me lembrar a última cena do Fight Club. Consigo fechar os olhos e ver a senhora maluca que me gritou na cara ontem na rua atrás do hotel na Avenida Paulista, ao mesmo tempo imaginar um filme passado em Nova Iorque, que é como vejo São Paulo, uma Nova Iorque lusófona. Está vívido, intenso, e faz-me dançar.
– Está lindo, irmão, lindo! - Digo para fora enquanto fumamos um cigarro à janela, a dançar frente a frente, a chuva forte de São Paulo a cair nos prédios ainda quentes do dia de Verão.

Carrego no play.

No ecrã pequeno à minha frente, um globo gigante começa a desvendar-se, começando pela Àsia, Médio Oriente, passando pela Europa, que fica para trás com a Península Ibérica em último, depois o Oceano Atlântico e as Américas do outro lado, acabando com a face do globo que une os dois continentes, mostrando centenas de cidades iluminadas a electricidade naquilo a chamamos hoje de O Ocidente, com uma música orquestral operática triunfante, e a palavra ‘universal’ em letras grandes. Os créditos iniciais começam a rolar num ecrã preto, creditando as mais importantes das centenas de pessoas que deram 3 a 5 anos da sua vida para fazer este filme.

 

Por baixo de mim o Atlântico.

 

Adormeço no começo do filme, esgotado, a cerca de 6 horas de São Paulo.

 

* * *

30.09.25

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Pelo farmadrive cada medicamento

vem com menos ansiedade
Fora do branco clínico intimidante
E do olhar de frente do farmacêutico
a tentar descrever os meus sintomas

Prefiro olhar de lado, no carro,
A música baixa
e a tensão também

Uma conversa à janela com alguém
Um sorriso e talvez até um ajeitar de cabelo
com o dedo, para trás da orelha
Tudo a seguir desta luz vermelha

— Prefere o genérico?
Não, pode ser o normal
O de referência

Carrego no botão do volante para falar com o meu Polestar
— ir para casa.

Para o conforto de uma luz suave,
nem demasiado quente nem demasiado fria
No tecto os padrões turquesa que reflectem da piscina
Na parede o piscar abrupto de uma cilada na televisão

Encontro conforto na direção fotográfica do meu dia-a-dia
E a vida é um filme no qual sou o realizador,
um actor de método
e sobretudo um espectador

***

ikea

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01

Aos 32 anos, já não sou um miúdo. Já não estou na categoria de jovem, de pós-adolescente. De vez em quando um condutor de Uber mais velho ainda me cumprimenta com “bom dia, jovem”, mas cada vez menos.

Onde está esse limite e quando é que o passei? Ainda agora, aos 28 anos, estava do lado de lá - e quatro anos depois já não estou. Serão os cabelos brancos que invadem a minha cabeça, subindo pelas têmporas? A filha de 3 anos que já começa a formar as primeiras memórias?

 

Aos 28 eu andava de saída em saída, de programa em programa, a tentar agarrar cada pedaço de experiência como se a vida fosse uma sucessão de verões intermináveis, e não a carregar o meu carro elétrico a caminho do Algarve, com a minha família no banco de trás. É essa a diferença, respondo a mim mesmo.

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Fotografia: José Pereira

Olho para o lado: uma fila de dez carros elétricos, homens de pólos e calções, cartão da EDP Electric na mão, bebés a dormir nas cadeirinhas, carros cheios de malas, parceiras no banco do passageiro a mexer no telemóvel.

“Já tentou pela aplicação? O sistema de carregamento em Portugal ainda deixa muito a desejar, espere que aquele ali vague, acho que está a carregar bem.” Neste momento, há que admitir: eu sou um destes homens.

 

Não consigo acreditar.

Vejo os últimos sete anos da minha vida a passar à frente: os amores de verão, os desgostos que tornavam tudo vívido, uma bissexualidade que começava finalmente a ser explorada, as noites de três dias sem remorsos, os fins de tarde no telhado do prédio em Arroios, as cervejas no parque, as unhas de gel, o carisma e o desprendimento induzidos pela dopamina e serotonina, o dedo-do-meio apontado às regras da sociedade patriarcal.

Esta semana:
1) marcar mais sessões de produção;

2) reservar mesa no Solar do Presuntos;

3) levar o carro a lavar;

4) tratar da pré-inscrição da criança na escola internacional;

5) marcar as férias na Grécia e no Algarve.

O trabalho tornou-se o meu tempo de lazer mais prazeroso. Já não vejo os amigos com quem não tenho relação profissional há meses. Notícias de diagnósticos de cancro começam a surgir aqui e ali. Não consigo sair de uma dormência perante o desmoronamento do mundo, que agora testemunho através de um ecrã LED de 32”.

As ruas sujas, vivas e estimulantes que outrora foram o meu alimento já não são o meu habitat natural.

Pintura contemporânea de homem numa piscina, inspirada no modernismo californiano, com casa minimalista ao fundo.

David Hockney – Portrait of an artist (pool with two figures)

No meu habitat actual do Noroeste de Cascais - ao qual me demorei um pouco a adaptar, carregando hábitos selvagens adquiridos ao longo de anos na selva de calçadas brancas, a verdade é que estou confortável. Um conforto tão grande que me traz uma satisfação que nunca tinha sentido mas que outras vezes me faz sentir dormente, a arrastar-me pela vida de refeição em refeição.  O absurdo da existência tornou-se evidente, revelado pelo silêncio dos subúrbios forrados a relva, piscinas e letreiros de stands de carros de luxo.

Olho para os homens mais velhos num hotel: parecem-me orangotangos agarrados a sanduíches de atum e maionese. É-me muito claro que a vida vai passar mais rápido do que eu esperava. A frase “ainda falta tanto tempo para isso!” é agora uma memória de infância que revisito com espanto, como se fosse um filme.

Lembro-me de estar deitado no meu quarto na Graça a olhar para o tecto branco horas a fio, aconchegado no lençol de quem tem todo o tempo do mundo pela frente.

Fotografia artística de uma mão envelhecida sobre água azul, explorando temas de tempo e memória.

Imagem gerada por IA

Sinto-me com medo e perdido, à procura de sentido num universo sem significado. O pensamento da morte está sempre presente, e acorda-me num solavanco quando estou prestes a adormecer. Ao mesmo tempo tiro prazer em pensar nestas coisas se tiver um cigarro e um copo na mão. Se não fosse este barulho e inquietação, seria só mais um pai com carro elétrico naquela fila a caminho do Algarve? Ou será que eles também pensam nestas mesmas coisas - e sou mesmo igual aos outros pais de Tesla? Bebo um gole de cerveja gelada e preparo-me para saltar para dentro da piscina. Mergulho, abro os olhos debaixo de água e vejo a superfície ondulante e espelhada, a luz a entrar, o mundo real separado por uma fina camada gelatinosa.

Experiencio a eternidade.

  

Um dia, mais tarde ou mais cedo, vou mergulhar nesse líquido informe e ficar nesse intervalo para sempre. Olhar o mundo como luz e matéria distorcida, por um momento eterno. Vai ser lindo, e depois vai-se desvanecer pouco a pouco.

  

Dou mais um gole na cerveja média fresca.

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